Como todos, eu já perdi pessoas importantes — e, nessas horas, o mundo quase desmorona. A dor é imensa. Mas, também como todos, precisei continuar, porque havia outras pessoas que contavam, e ainda contam, comigo. E nessa continuidade me deparei com questões práticas, burocráticas, legais e financeiras a serem resolvidas em meio à dor. Foi graças a estudos prévios e trabalhos de planejamento patrimonial que atravessei essa fase com uma turbulência menor do que a vasta maioria das pessoas enfrenta — e só consegui graças a uma “carta de amor”.
A chamada Family Love Letter é um documento informal, escrito pelo patriarca ou matriarca da família – ou por quem está estruturando o patrimônio – com um caráter mais explicativo e humano do que jurídico. Ela não substitui testamentos, contratos sociais, holdings ou trusts. Mas os complementa, oferecendo algo que os instrumentos legais não conseguem entregar: contexto, intenção e afeto. É onde o autor deixa registrado o “porquê” das escolhas, transmite valores familiares e dá instruções práticas para facilitar a vida de quem ficará.
Assim, uma Family Love Letter pode ter como finalidades transmitir valores e visão de mundo em temas como trabalho, família, dinheiro, educação e causas que marcaram a vida do autor; evitar conflitos, esclarecendo intenções e reduzindo ressentimentos e disputas entre herdeiros, mostrando que nada foi arbitrário; e, ainda, facilitar o acesso às informações práticas sobre bancos, investimentos, seguros, consultores e documentos.
Sob um prisma jurídico, a carta complementa o planejamento patrimonial. Quem já atuou em inventários sabe o que é ver um cônjuge ou filho sem a menor ideia de como acessar as contas bancárias, resgatar um seguro de vida ou até encontrar documentos básicos como a matrícula de um imóvel. Assim, a FLL (sigla que usarei daqui para frente), além de deixar um legado emocional — histórias, conselhos e memórias —, resolve esse problema ao centralizar informações que não cabem em um testamento ou contrato, mas que fazem toda a diferença na chamada “hora do vamos ver”.
Ela costuma trazer grandes blocos de informações, como: instituições financeiras e investimentos (onde estão as contas, quem são os gerentes, quais corretoras guardam os ativos, como acessar tokens e plataformas online); seguros e previdência (apólices de vida, planos de saúde, seguros de automóvel e residencial, previdência privada e os respectivos contatos); patrimônio físico e empresarial (imóveis, veículos, participações em empresas e, se for o caso, bens no exterior); contratos e documentos relevantes (doações, empréstimos, procurações, testamentos); informações digitais e senhas (e-mails, redes sociais, exchanges de criptomoedas, programas de milhagem, cofres digitais); além de contatos-chave como advogados, contadores, assessores financeiros, corretores de seguros, imobiliárias e quem mais possa ajudar os herdeiros no momento de transição.
Apesar de ainda ser incomum, para quem cuida do patrimônio de famílias — como eu —, este tipo de instrumento deveria fazer parte das recomendações por um motivo simples: ele dá humanidade e clareza a um processo que costuma ser apenas técnico. O testamento diz quem recebe o quê. A holding define como os bens serão administrados. Mas nenhum desses instrumentos explica o porquê ou ajuda os herdeiros a encontrar o que precisam no dia seguinte à perda.
Com uma FLL, o inventário anda mais rápido, menos patrimônio se perde por falta de acesso ou por burocracia e os herdeiros compreendem melhor as intenções do(a) patriarca/matriarca, evitando desgastes emocionais.
Mas, para mim, o mais importante é que a pessoa deixa não só bens, mas um pedaço de si — seus valores, suas palavras e seu cuidado.
Organizar uma FLL é um ato de amor e responsabilidade. Não exige formalidade jurídica, mas pede organização e atualização periódica. Ela pode ser uma carta, um dossiê ou até um caderno, desde que cumpra sua função: orientar, acolher e facilitar a vida de quem vai dar continuidade ao legado.
Mais do que um documento, a Family Love Letter é uma ponte entre gerações — um gesto que suaviza a dor do luto e transforma um momento difícil em algo um pouco mais humano.